Estive por duas vezes em serviço de reportagem no Congo Kinshasa, actual República Democrática do Congo, então presidida pelo ditador Mobutu ou, como ele queria que lhe chamassem, Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa Za Banga, isto é, O Todo Poderoso Guerreiro que, Por Sua Força e Inabalável Vontade de Vencer, Vai de Conquista em Conquista, Deixando Fogo em Seu Rastro.
Nessas visitas, reportei as viagens de dois Presidentes da República
Portuguesa que fiquei a conhecer melhor.
O general António Ramalho Eanes viajou pelo
Congo Kinshasa - depois de São Tomé e antes do Congo Brazzaville - em Março de 1984. A mais intensa actividade no Congo verificou-se em
Kinshasa: havia velhas questões que tinham confrontado os portugueses
residentes no país de Mobutu com a decisão presidencial de zairização da economia, o que em muitos casos se resumiu à mera
expropriação de bens de empresários radicados no país. Havia alguma tensão no
ambiente.
O helicóptero sempre a postos para a eventualidade de ter que tirar o ditador de apuros. Foto do autor do texto. |
Outra intensa comezaina foi a bordo do iate
presidencial de Mobutu, subindo o rio Zaire, com o helicóptero do ditador
pousado à popa, com motores ao ralenti, para fugir a qualquer momento. O
regresso de Lisala a Kinshasa fez-se de automóvel e dizem testemunhas que os
dois chefes de estado não trocaram nem uma palavra.
No final da visita houve conferência de
imprensa dos dois presidentes mas os “jornalistas” locais, apoiados pelos
seguranças, monopolizavam as perguntas encomendadas para Mobutu, não permitindo que outros
jornalistas, nomeadamente os portugueses, questionassem o general Eanes. Pus o
braço no ar e não desisti até que me passaram o microfone. E então perguntei,
em português, ao general Ramalho Eanes se tinham ficado resolvidos todos os
problemas da comunidade portuguesa de Kinshasa.
O que eu fui dizer! Mobutu perdeu a cabeça e
desatou aos gritos, antecipando-se à resposta de Eanes, para mim, invectivando:
- Quelles
problemes, monsieur, mais quelles problemes?
Ao mesmo tempo, os gorilas da segurança zairense me cercavam, isolando-me dos outros jornalistas. Sentado à mesa da conferência de
imprensa, num plano um pouco superior, o general Ramalho Eanes percebeu a situação num
ápice. Levantou-se da mesa, encaminhou-se na minha direcção, estendeu-me a mão
direita, passou-me o braço esquerdo pelos ombros e com a sua autoridade de
chefe de um estado de visita a Kinshasa resgatou-me daquele cerco. Ainda em Kinshasa agradeci-lhe o seu gesto mas fiquei sempre com essa dívida para com o então Presidente da República.
Soares,
Kinshasa, Novembro de 1989
Maria Barroso e Mário Soares, à esquerda da foto,
do lado direito a carrinha dos jornalistas durante o safari
|
Viagem para lá dos vulcões |
Rio Ruzizi: esta foto é do repórter que assina este texto. O grande Sebastião Salgado também fotografou este rio e esta barragem de pescadores, a preto e branco e genial |
O almoço, servido à sombra de duas enormes
palhotas – uma, maior, para a comitiva presidencial; outra, mais pequena, para
pessoal menor – era seguido avidamente por uma multidão de residentes nas
aldeias das margens do lago Kivu. Pensava-se que era apenas curiosidade, até se
perceber que toda aquela gente fora atraída porque ali circulava um bem de
reduzidíssimo consumo na região: comida. Era o que eles pediam por gestos. E
quando aqueles homens, mulheres e crianças apertaram um pouco o círculo em
redor das palhotas onde os visitantes se banqueteavam, a guarda pretoriana de Mobutu
avançou à cacetada. Uma selvajaria.
Mário Soares em Kinshasa, Novembro de 1989 |
Ninguém soube como se resolveu o problema
diplomático. Mas naquele dia tive orgulho do presidente do meu País ter a
coragem e a frontalidade que Mário Soares revelou, num dos locais mais perdidos, mais isolados do mundo: a margem congolesa do lago Kivu. Para lá do Virunga, dos vulcões e dos
gorilas na bruma.
João Paulo Guerra, Congo Kinshasa,
serviços para O Diário, Março de 1984 e Novembro de 1989
Sem comentários:
Enviar um comentário