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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Histórias do Congo à margem da História


Estive por duas vezes em serviço de reportagem no Congo Kinshasa, actual República Democrática do Congo, então presidida pelo ditador Mobutu ou, como ele queria que lhe chamassem, Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa Za Banga, isto é, O Todo Poderoso Guerreiro que, Por Sua Força e Inabalável Vontade de Vencer, Vai de Conquista em Conquista, Deixando Fogo em Seu Rastro. 
Nessas visitas, reportei as viagens de dois Presidentes da República Portuguesa que fiquei a conhecer melhor.




Eanes, Kinshasa, Março de 1984
O general António Ramalho Eanes viajou pelo Congo Kinshasa - depois de São Tomé e antes do Congo Brazzaville - em Março de 1984. A mais intensa actividade no Congo verificou-se em Kinshasa: havia velhas questões que tinham confrontado os portugueses residentes no país de Mobutu com a decisão presidencial de zairização da economia, o que em muitos casos se resumiu à mera expropriação de bens de empresários radicados no país. Havia alguma tensão no ambiente.
O helicóptero sempre a postos para a eventualidade 
de ter que tirar o ditador de apuros.
Foto do autor do texto. 
Para dar animação à visita, Mobutu ofereceu um banquete no Palácio Presidencial, protegido por uma guarda imperial ostentando barretes idênticos aos dos Queen's Guards de Buckingham, mas numa capital onde as temperaturas com frequência passam os 40 graus. E uma exclamação, em voz alta, de um dos convivas durante o banquete – Carne de Macaco! – fez grande parte dos presentes pôr o prato de lado e avançar para as frutas.
Outra intensa comezaina foi a bordo do iate presidencial de Mobutu, subindo o rio Zaire, com o helicóptero do ditador pousado à popa, com motores ao ralenti, para fugir a qualquer momento. O regresso de Lisala a Kinshasa fez-se de automóvel e dizem testemunhas que os dois chefes de estado não trocaram nem uma palavra.
No final da visita houve conferência de imprensa dos dois presidentes mas os “jornalistas” locais, apoiados pelos seguranças, monopolizavam as perguntas encomendadas para Mobutu, não permitindo que outros jornalistas, nomeadamente os portugueses, questionassem o general Eanes. Pus o braço no ar e não desisti até que me passaram o microfone. E então perguntei, em português, ao general Ramalho Eanes se tinham ficado resolvidos todos os problemas da comunidade portuguesa de Kinshasa.
O que eu fui dizer! Mobutu perdeu a cabeça e desatou aos gritos, antecipando-se à resposta de Eanes, para mim, invectivando:
- Quelles problemes, monsieur, mais quelles problemes?
Ao mesmo tempo, os gorilas da segurança zairense me cercavam, isolando-me dos outros jornalistas. Sentado à mesa da conferência de imprensa, num plano um pouco superior, o general Ramalho Eanes percebeu a situação num ápice. Levantou-se da mesa, encaminhou-se na minha direcção, estendeu-me a mão direita, passou-me o braço esquerdo pelos ombros e com a sua autoridade de chefe de um estado de visita a Kinshasa resgatou-me daquele cerco. Ainda em Kinshasa agradeci-lhe o seu gesto mas fiquei sempre com essa dívida para com o então Presidente da República. 

Soares, Kinshasa, Novembro de 1989
Maria Barroso e Mário Soares, à esquerda da foto,
do lado direito a carrinha dos jornalistas durante o safari
Muita gente terá histórias para contar sobre Mário Soares. Eu conto uma história que testemunhei como jornalista. Passou-se no final do mês de Novembro de 1989, durante uma visita do Presidente português ao Congo de Mobutu.
Viagem para lá dos vulcões
Numa derradeira etapa da viagem, a comitiva foi reduzida para uma visita para lá da cidade de Goma e do vulcão das montanhas Virunga. Aquela é a região fantástica dos gorilas na bruma, que também já foi cenário de massacres de uma sinistra guerra tribal. Passado o rio Ruzizi, com as suas barragens de troncos que os nativos utilizam para a pesca e que Sebastião Salgado registou numa foto magistral, a comitiva chegou às margens do lago Kivu. E foi à beira de um dos maiores lagos de África que foi servido o almoço. Ninguém fará ideia de quanto terá custado aos  congoleses o transporte para local tão inacessível de um número incalculável de garrafas de champanhe francês. Mobutu não prestava contas.
Rio Ruzizi: esta foto é do repórter que assina este texto.
O grande Sebastião Salgado também fotografou este rio
e esta barragem de pescadores, a preto e branco e genial
Mário Soares já tinha anteriormente manifestado algum desconforto com atitudes do ditador congolês. Mas a diplomacia e os interesses de muitos portugueses residentes no Congo obrigava a aguentar. Mas tudo tem limites.
O almoço, servido à sombra de duas enormes palhotas – uma, maior, para a comitiva presidencial; outra, mais pequena, para pessoal menor – era seguido avidamente por uma multidão de residentes nas aldeias das margens do lago Kivu. Pensava-se que era apenas curiosidade, até se perceber que toda aquela gente fora atraída porque ali circulava um bem de reduzidíssimo consumo na região: comida. Era o que eles pediam por gestos. E quando aqueles homens, mulheres e crianças apertaram um pouco o círculo em redor das palhotas onde os visitantes se banqueteavam, a guarda pretoriana de Mobutu avançou à cacetada. Uma selvajaria.
Mário Soares em Kinshasa, Novembro de 1989
E Mário Soares partiu a louça. Levantou-se da mesa e abandonou o almoço presidencial, refugiando-se sob a palhota dos jornalistas e outro pessoal menor e anunciando a retirada do local. 
Ninguém soube como se resolveu o problema diplomático. Mas naquele dia tive orgulho do presidente do meu País ter a coragem e a frontalidade que Mário Soares revelou, num dos locais mais perdidos, mais isolados do mundo: a margem congolesa do lago Kivu. Para lá do Virunga, dos vulcões e dos gorilas na bruma.

João Paulo Guerra, Congo Kinshasa, 
serviços para O Diário, Março de 1984 e Novembro de 1989 

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