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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Wiriamu passados que foram vinte anos

Por João Paulo Guerra,
com Manuel Vilas Boas e Fernando Alves
TSF, 16 de Dezembro de 1992

Houve um grupo de soldados que chegou lá na aldeia, juntou a gente e depois fuzilou toda a gente, por fim pôs capim em cima dos corpos e pôs fogo. E alguns que recuperaram os sentidos e com feridas de balas nos braços e queimaduras conseguiram fugir. Entre esses estava o António Michone, que fugiu e veio aqui para o hospital, contou o que aconteceu e curou-se.”

         Terá sido assim, há vinte anos, em Wiriamu, Tete, Moçambique.
         É pelo menos o que conta o padre Domingos Ferrão, ao tempo missionário português, nos arredores de Tete, hoje [Dezembro de 1992] moçambicano e vigário-geral da diocese.  O relatório original sobre os acontecimentos é de sua autoria. 



Recuando até 16 de Dezembro de 1972, não há sinais de sangue nas páginas dos jornais desse dia. Tudo relativamente calmo, naquele 16 de Dezembro, um sábado: os astronautas da Missão Apolo regressavam à Terra e Wernher von Braun garantia que os americanos voltariam à Lua nas próximas duas décadas; cá na Terra, Richard Nixon e Le Duc Tho cozinhavam em segredo, em Paris, a paz para o Vietnam; mas Henry Kissinger não estava a gostar da receita; na primeira página do Diário de Notícias, ao preço de 15 tostões, explodiam os preços na Europa; em Nova Iorque, a assembleia-geral da ONU condenava a construção da barragem de Cabora Bassa; em Lisboa, acompanhado pela mulher e uma das filhas, o almirante Américo Tomaz assistia no Tivoli à ante-estreia do filme Se a Minha Cama Voasse.
Quanto a Moçambique, nos jornais desse dia, tudo bem: Obrigado, muchas gracias, merci bien, tudo é Kanimambo… 
Mas nessa tarde de 16 de Dezembro de 1972, nas aldeias de Chawola, Juau e Wiriamu, regulado de Gandali, província de Tete, Moçambique, só se ouviam os berros dos soldados, os disparos das armas e os gemidos das vítimas feridas de morte. Essa notícia, porém, levaria sete meses para chegar às páginas dos jornais.
10 de Julho de 1973: pela mão do padre Adrian Hastings, a denúncia dos massacres de Wiriamu, esboçada nos papéis originais do padre Domingos Ferrão, chegou à primeira página do Times, de Londres: Massacre português relatado por padres, em título. Mais de 400 vítimas.
Um escândalo em letra de imprensa. E a imprensa era o Times, em véspera da visita a Londres do chefe do governo português. A notícia sobre os acontecimentos na tarde de 16 de Dezembro de 1972, em Wiriamu, percorrera um longo caminho. Atribuído à congregação dos Padres de Burgos, o relatório que estava na base da denúncia fora elaborado, na sua versão original, por um padre português da Missão de S. Pedro, nos arredores de Tete. Hoje com a nacionalidade moçambicana e a função de vigário-geral da diocese de Tete, o padre Domingos Ferrão reconhece a paternidade do relatório sobre os acontecimentos naquele tarde de terror, há vinte anos, em Wiriamu.
- O famoso relatório, esse que andou por aí e que o padre Hastings mencionou, quem fez o relatório fui eu. Só que depois as coisas andaram assim e como eu era português, o meu nome não se mencionou. Estavam lá cem nomes de pessoas que sofreram o massacre, umas morreram, outras salvaram-se. Todo o mundo conhece esse massacre por causa desse relatório que eu fiz.
MVB – E porque fez o relatório?
- Era para contestar. Era horrível aquilo ter acontecido aqui mesmo, a uns vinte ou vinte e cinco quilómetros da cidade e depois toda a gente ignorar aquilo não estava certo, a gente tinha que pôr aquilo à vista.
MVB – O padre Domingos viu mesmo os resultados do massacre?
- Então eu apanhava as pessoas que fugiam do fogo, feridas por balas, eu apanhei-as e trouxe-as para o hospital. Eu mesmo socorri essas pessoas. Só não fui ao local. Mas as pessoas que fugiam iam chegando, eu as apanhava e meti-as no hospital. E elas narravam o que tinha acontecido naqueles dias.
Padre Domingos Ferrão, o autor da versão original sobre o massacre de Wiriamu, a partir dos relatos de sobreviventes.
- O que eu mesmo apanhei, que tinha fugido do fogo, e que se chama António Michone, é o único que continua a trabalhar aqui. Há outro que sobreviveu, que se chama Domingos Cantante, e esse vive aqui a uns 90 quilómetros.
Ficou alguém para contar o que se passou, faz agora vinte anos, em Wiriamu. O relatório dos padres continha listas nominais de vítimas dos massacres nas aldeias de Chawola, Juau e Wiriamu.
Ao todo, 53 mortos em Chawola, 138 em Wiriamu, todos identificados. E muitos corpos estavam mutilados e irreconhecíveis, uns degolados, outros com a cabeça destroçada, corpos amontoados, deitados, alguns enterrados até à cintura, como se nas aldeias se tivesse jogado algum jogo macabro.
- Naquela tarde, em Wiriamu, o povo viveu momentos de terrível angústia - escreviam os autores do relatório.
E contavam exemplos:
- Cintaya, uma rapariga de quatro anos, assustada, chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem esperar, continua: Toma o biberão! E metendo à força o cano de uma arma de fogo pela boca da criança, diz: Chupa. E dispara. A criança cai, com um rombo na nuca.
O padre Domingos Ferrão, autor da versão original da denúncia dos massacres, recolheu os testemunhos em que assenta o relatório de Wiriamu.
- O relatório dos padres é uma invenção montada com fins políticos por cristãos marxistas.
Quem o disse, meses depois, em entrevista a um jornal alemão, foi Dom Custódio Alvim Pereira, ao tempo arcebispo de Lourenço Marques e depois prelado doméstico de João Paulo II. Para Dom Francisco Nunes Teixeira, ao tempo bispo de Quelimane e presidente da Conferência Episcopal de Moçambique, a palavra de Dom Custódio não era, no entanto, um dogma. E foi por unanimidade que os bispos de Moçambique aprovaram um documento condenado a atitude violenta e desumana das tropas portuguesas que actuaram em Wiriamu, passam vinte anos. O documento foi enviado ao governador-geral de Moçambique, Pimentel dos Santos, que respondeu, tempos depois, ao presidente da Conferência Episcopal:
- O governador escreveu-me uma carta em que dizia que as Forças Armadas tinham ordens terminantes para que tivessem um comportamento humano – Recorda o antigo presidente da presidente da Conferência Episcopal de Moçambique. - E o único caso em que foi apontado um criminoso, ele foi já punido. Quanto ao caso de que me fala está já nomeado um inspector judicial que irá fazer um inquérito de cujo relatório depois lhe darei conhecimento. Nunca mais veio essa resposta.
A Conferência Episcopal de Moçambique assumiu a denúncia dos massacres face ao poder. Mas o então presidente da Conferência Episcopal também admite, todos estes anos depois, que os missionários, em certos casos, se identificavam com as posições da guerrilha.
- Eu ouvi alguns missionários a cantar: Ladrões do mar… pobre povo… e tal e tal… Eram coisas de momento. O que eu entendo é que todos os missionários, em todo o momento, procuraram defender quer a Igreja, que as populações.
Outros tempos. Há vinte anos, o Papa era Paulo VI. E duas semanas após a denúncia dos massacres, dirigindo-se aos fieis, em Roma, o Papa disse que a Igreja não podia deixar de expressar os seus vivos lamentos pelos crimes cometidos contra populações indefesas. Em Setembro de 1973, depois de chamar a Roma os bispos de Tete, Nampula e Quelimane, Paulo VI condenou os tristes e bem conhecidos acontecimentos de Moçambique
- O Papa teve uma conversa particular com cada um de nós, depois com os três em conjunto e nessa altura disse-nos que éramos pastores, não estávamos numa missão política, no entanto, tudo quanto pudéssemos fazer para que houvesse bom senso entre as partes em litígio e pela paz em Moçambique – recorda o bispo de Quelimane.  
A Fé ia perdendo o Império. Guerra era guerra, mas Wiriamu passou as marcas da guerra. Jorge Jardim, então um autêntico vice-rei de Moçambique, visitou as aldeias massacradas e deixou escrito o que encontrou ali:
- Indiscutíveis vestígios de excessos cometidos por tropas portuguesas que actuaram segundo instruções precisas.
E o próprio chefe do governo português, Marcelo Caetano, escreveu:
- Em Wiriamu alguém desrespeitou as leis da Humanidade.
Marcelo Caetano escreveu no seu Depoimento – redigido já no exílio e publicado no Rio de Janeiro em 1974 - que os acontecimentos de Wiriamu o levaram a determinar que o general Kaulza de Arriaga não fosse reconduzido no comando-chefe de Moçambique. Mas o general desmente, embora admita que alguma coisa se passou, há vinte anos, em Wiriamu:
- Havia uma operação em curso que era a Operação Marosca, da qual na altura eu nem sabia o nome. Sabe quantas operações haviam por dia em Moçambique?
JPG – Não, não sei.
- Havia 150 operações militares por dia. Centena e meia. Claro que eu não sabia o nome das operações todas. Sabia aquelas que eram especificamente do Comando-Chefe, o que era raríssimo. Foi a Operação Nó Górdio e não sei se mais alguma. As outras eram da responsabilidade dos comandos dos sectores. Essa foi uma operação da responsabilidade do comando do sector de Tete. Foi uma operação porque havia lá um chefe terrorista, um tal senhor Raimundo, que tinha lá 300 homens com ele. E foi preciso atacar isso. Isto soube eu depois, porque era uma operação local. Morreram umas sessenta e tal pessoas, entre terroristas e não terroristas. Eu mandei fazer dois inquéritos, Depois de eu me vir embora, o presidente Marcelo Caetano mandou fazer outro inquérito. E todos chegaram à conclusão que morreram umas sessenta e tal pessoas, entre terroristas e não terroristas.

Wiriamu revisto, vinte anos depois, pelo então comandante-chefe das tropas portuguesas em Moçambique. Wiriamu, no entanto, nem sequer foi uma excepção à regra da guerra colonial em Moçambique. Depois de Wiriamu, já em 1974, houve massacres em Inhaminga; antes, em 1971, tinham acontecido os massacres de Mucumbura, denunciados pelos padres de Macuti, Beira, Fernando Mendes e Teles Sampaio:
- A homilia tinha por tema “Se queres a paz trabalha pela justiça”. E foi de facto muito dura e directa. Eu disse que se cometiam naquele momento injustiças graves em Moçambique. Falei de massacres, concretamente do massacre de dezassete pessoas em Mucumbura, que tinham sido feitos entre Maio e Setembro de 1971, disse que tinha os nomes das vítimas, que tinham sido queimadas vivas. E acrescentei que muitos soldados iam obrigados para Moçambique e que a riqueza que se explorava no território nem sequer era uma riqueza para Portugal e para os portugueses. E denunciei que havia racismo, que por exemplo no Hospital Central da Beira, que era na minha paróquia, no Macuti, o pessoal sendo preto ganhava metade do pessoal branco.
         O padre Teles Sampaio foi preso, julgado e condenado pelo conteúdo da homilia. O advogado que o defendeu em tribunal, Adrião Rodrigues, é de opinião que os massacres não eram actos isolados de guerra mas parte de uma política de terra queimada.
Jorge Jardim visitou Wiriamu dias após o massacre
         - Isso foi muito discutido nas reuniões que tive com os padres: se aquilo eram actos isolados, um acontecimento de guerra excepcional, ou se era uma política de terra queimada naquela zona. E os padres tinham todos a opinião de que aquilo fazia parte de uma política de terra queimada, talvez integrada na defesa de Cabora Bassa. A frequência das acções estava a aumentar de tal maneira que tinha toda a feição de ser uma política determinada e não um acto descontrolado de guerra.
Foi assim que episódios da guerra em Moçambique chegaram à barra dos tribunais em Lourenço Marques.
Os massacres de Mucumbura, como os de Wiriamu, são em geral atribuídos às tropas de Comandos. Mas a Associação de Comandos, pela voz do seu dirigente capitão Gonçalves, não reconhece essas páginas da história.
- Em termos práticos, de acontecimentos, a Associação desconhece. E ao desconhecer, logicamente não emite opinião. De qualquer forma, o que nós pensamos é que toda a instrução que se recebe nos Comandos, o Código Comando e os estatutos da Associação de Comandos não prevêem, antes pelo contrário condenam veementemente, qualquer tipo de acção daquela que é descrita, seja feita por Comandos ou seja por quem for.
Em Janeiro de 1972, o comandante-chefe das tropas portuguesas em Moçambique, general Kaulza de Arriaga, proclamara a vitória final sobre a FRELIMO. Mas no fim do ano, feitas as contas, as tropas portuguesas tinham sofrido as maiores baixas de sempre da guerra no território: 218 mortos num ano. Em Janeiro foi anunciada a conclusão da primeira fase das obras da barragem de Cabora Bassa. Mas em Julho, a FRELIMO fez alastrar a guerra de Tete para Manica e Sofala; e no dia 18 de Setembro, a guerrilha atacou em simultâneo sete bases militares portuguesas no Niassa, Cabo Delgado e em Tete. E os vizinhos de Moçambique, na Rodésia de Ian Smith, acusaram as tropas portuguesas comandadas por Kaulza de Arriaga de usarem em Moçambique velhas técnicas coloniais de guerra ultrapassadas pela história militar.   
Numa derradeira tentativa para decidir a guerra a favor das tropas portuguesas, o general Kaulza de Arriaga adoptara uma estratégia traduzida dos manuais americanos usados no Vietnam: Vietnamization por africanização das tropas, search and destroy por operações de busca e destruição, strategic hamlets por aldeamentos estratégicos. Em 1972, cerca de 172 mil habitantes de Tete estavam instalados em aldeamentos estratégicos mas havia mais 400 mil por aldear. A resistência das populações ao aldeamento forçado esteve na origem de casos como os de Wiriamu. Mas nas aldeias do regulado de Gandali não ficou ninguém para aldear. O padre Domingos Ferrão só encontrou em Wiriamu vestígios de uma aldeia morta. 

- Wiriamu fica numa região isolada e a aldeia não foi reconstruída. Quando eu lá fui, depois do massacre, só havia uma campa comum, com as ossadas que encontraram. É aí que querem agora fazer um pequeno monumento.
MVB – Mas continua a ser uma zona perigosa?
- É perigosa porque a gente não sabe onde pisa.
Wiriamu vinte anos depois de um massacre da guerra colonial. Mas nos posteriores anos de paz em Moçambique foram tantas as guerras, tantos os massacres, que Wiriamu vai-se perdendo na memória do sofrimento dos moçambicanos. Os livros escolares dedicam-lhe um parágrafo. Há uma pedra tumular pousada em cima das ossadas das vítimas. 

João Paulo Guerra, com Manuel Vilas Boas e Fernando Alves, 
TSF, 16 de Dezembro de 1992


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