Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 31 de Janeiro
de 2001
Naquela
tarde, no restaurante Isaura, em Lisboa, a dada altura do almoço veio à
conversa José Cardoso Pires. Melhor dizendo, tomou lugar à mesa e ninguém viria
mais a propósito. O convidado do Diário Económico naquele dia bem pode ser
visto como um «indivíduo meditado», um «esclarecido», que cultiva o «primado da
inteligência», afinal um «descendente actual em linha directa dos libertinos de
boa estirpe», como diria o autor da Cartilha
do Marialva. Como cronista, nas páginas do Expresso, tem aliás travado um
duro e persistente combate contra a mais recente extracção do marialvismo, e a
respectiva fisionomia política, que é o «profundo desdém por todas as coisas do
espírito». Chama-se Nuno Brederode Santos, tem 56 anos, é assessor da
administração do IPE e consultor político do Presidente da República.
A
arma do seu combate é a ironia. E como se trata de um combate, o combatente
escolhe o seu campo e define o adversário. «Sei ser isento mas não quero. Quero
estar com os meus e contra os meus adversários. Cada um escolhe o seu campo,
excepto uns tipos que falharam o seminário e que dizem ser isentos».
O
combate tem evidentes contornos políticos e a correspondência que recebe
confirma que os campos estão marcados e extremados. «Recebo cartas de chuchas sectários que fazem muitos
elogios e de laranjinhas que chamam
nomes à minha mãe». Como homem político de esquerda e cronista, Nuno Brederode
Santos tem não só adversários como também inimigos. «Tenho um rol de inimigos
de que muito me orgulho». Não cita nenhum em particular. «Não lhes faço
propaganda, não os promovo, não lhes ponho o nome no jornal». Por outro lado,
considera que a amizade é ainda um valor na política e essa é aliás a base das
funções que desempenha em Belém. «O Jorge [Sampaio] é o meu melhor amigo, como
que um irmão».
Nuno
Brederode Santos não quer outro percurso nem qualquer carreira política. «Quero
ser um cidadão livre». Seja como for, o combate político não é um duelo ao
pôr-do-sol. Cinéfilo que cita de cor diálogos de westerns clássicos, diz que já não há cowboys, nem índios, e que nem conhece heróis. «O herói suscita um
sentimento que eu não tenho: a admiração. Eu não admiro os meus contemporâneos.
Resta-me admirar os clássicos». Mas se vivesse no século XVII, provavelmente
não admiraria Shakespeare. «Visto no seu tempo, seria um manga-de-alpaca,
vagamente suspeito de pedofilia, que cumpria um trabalhinho de funcionário
público como amanuense da Corte».
Com
uma cultura literária - «a dos meus filhos já é audiovisual» -, Nuno Brederode
Santos ficou-se até hoje, na escrita, pela crónica e o jornalismo. Mas tem na
gaveta duas páginas de um conto por contar: «O Dia em que Deus conspirou contra a Literatura, chamando ao seu
seio Shakespeare e Cervantes, que nunca se conheceram».
As
tecnologias não lhe inspiram qualquer superstição. Mas a verdade é que um
futuro dominado pelas máquinas lhe mete medo. «Um medo mais suportável que o
que tinha uma pega no tempo de Jack, o Estripador». A verdade é que temos hoje
conhecimentos «que dão um lastro de informação brutal sobre a civilização e o
mundo, como também a noção da imensidão do que há para conhecer e que não
conhecemos».
E
é assim que o mundo se aproxima mais da realidade inquietante prevista por
Orwell que da ficção científica. Nuno Brederode Santos está, apesar de
desconfiado, confiante. «Acredito mais num refluxo dos instrumentos do que na
subjugação do homem à máquina». À cautela, porém, não se vê «a fazer grandes
voos de computador» e despreza o telemóvel. «É um bufo que diz a toda a gente
onde estou e onde posso ser chateado a qualquer hora». Quanto a tecnologias,
estamos falados. Nuno Brederode Santos mantém o seu sentido de voto. «Vai para
o inventor do autoclismo, que não sei quem foi».
Homem
de esquerda por temperamento e socialista por militância, digamos que vaga e
franco-atiradora, Nuno Brederode Santos considera que tem características
conservadoras. «Cumpridos os meus deveres de homem de esquerda, o meu carpe diem é conservador». Frequenta
todos os dias o mesmo restaurante, todas as noites a mesma tertúlia, no mesmo
bar, e as viagens começam a cansá-lo. «Ainda por cima não me deixam fumar».
Condena todos os fundamentalismos, designadamente o ambientalista, e apesar de
um gosto particular pela zoologia, lança o desafio: «Informem-me se há provas
de que ainda haja um lince na Malcata».
Formado
na geração da crise académica dos anos 60 e na cultura da resistência à
ditadura, Nuno Brederode Santos está de acordo com quem diz que a democracia
está incompleta. Custa-lhe a compreender que uma coisa completa «não seja
substituída» e diz mesmo, citando Poe: «Um barco não está completo antes de
naufragar». Uma democracia completa significaria que «os democratas se sentavam
a olhar uns para os outros». Mas salienta que «as estatísticas confirmam que a
esmagadora maioria da população vive melhor que no tempo da ditadura» e a
observação directa comprova que «o país está irreconhecível, para melhor».
Não
se surpreende, no entanto, com o estudo recente que revela que os portugueses
são um povo conformado com as desigualdades sociais. «Não sei se é estrutural
ou epidérmico. Mas 48 anos de ditadura correspondem a duas gerações e criaram
uma cultura de resignação». No entanto, as reivindicações, mesmo que puramente
corporativas, estão na rua. «Até os antigos combatentes já se manifestaram na
rua. Não sei se para reivindicar o direito à guerra. Se foi, acho que devia
ser-lhes concedido».
«Racionalista
em exercício», diria Cardoso Pires, praticante de uma ironia cortante, Nuno Brederode Santos confessa no
entanto que as emoções podem levá-lo às lágrimas. É o que acontece ao ouvir o Triplo Concerto de Beethoven, quando
Karajan liberta Rostropovich, Oistrakh e Richter para a competição a solo. Não
é no entanto um melómano. «Só percebi que Freddy Mercury cantava bem quando o
ouvi em dueto com a Monserrat Caballé». Ainda gosta dos Beatles, de Cat
Stevens, de Elton John. E quando lhe pergunto se foi ao concerto de Elton John
no Casino do Estoril, responde-me: «Não fui eu, nem ele».
A
música entrou na conversa por altura dos cafés. Ficamos por aqui.
Pataniscas
O jornalista do DE convidou Nuno Brederode Santos para
almoçar no restaurante Isaura, em Lisboa. De uma lista que é uma viagem pela
agricultura, a pecuária, a pesca e a caça, o convidado deteve-se na gastronomia
lisboeta. «As pataniscas são pequeninas?», quis saber. Eram e foi o que veio.
Numa mesa próxima almoçava naquele dia o presidente da
CGD. No final do seu almoço, António de Sousa veio cumprimentar Nuno Brederode
Santos. O DE ficou a saber que foram em tempos grandes adversários de
matraquilhos e que o derradeiro jogo terminou com um conclusivo e definitivo
António de Sousa 7 Nuno Brederode Santos 3.
João Paulo Guerra, Diário Económico, 31 de Janeiro de
2001
Sem comentários:
Enviar um comentário