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sexta-feira, 3 de abril de 2015

O papão do Golfo

Medo da guerra aflige crianças portuguesas

Por João Paulo Guerra, 
Público, 24 de Outubro de 1990
O serviço de atendimento telefónico SOS-Criança tem registado, nos últimos meses, uma particular e inesperada angústia por parte de um considerável número de crianças portuguesas: o medo de uma guerra no Golfo com envolvimento de Portugal.


O SOS Criança – que responde pelo telefone de Lisboa 7931617 [número atual  21 361 7880] – é uma iniciativa do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e pretende ser um serviço mediador entre a criança e a sociedade ou, como disse ao PÚBLICO a presidente do IAC, Manuela Ramalho Eanes, «uma escuta afectiva dos problemas das crianças».
Constituído em Novembro de 1988, o SOS Criança dedicou-se inicialmente a acolher protestos e denúncias relativas a maus tratos sobre crianças: funcionava cinco horas por dia como linha anónima e confidencial. Porém, segundo a coordenadora do serviço, Maria do Céu Curto, também técnica do Tribunal de Menores, o SOS não quis limitar o âmbito do projecto, nem descurar a acção preventiva, abrindo a linha a todo o tipo de situações».
Hoje, o serviço funciona entre as 9 e as 18 horas. Uma pequena equipa de psicólogos, educadores e assistentes sociais responde diariamente aos apelos e consultas de crianças de adultos sobre situações que afrontam os direitos, o bem-estar e a felicidade das crianças. Num futuro próximo, o serviço passará a dispor de um apartado postal para alargar o âmbito da sua atividade às consultas por correspondência escrita.


SOS – Solidão
De 25 de Novembro de 1988 a 30 de Junho passado, o SOS Criança atendeu um toral de 2989 apelos e consultas, 2098 das quais provenientes de crianças. Elas queixam-se, com mais frequência, de situações que resultam de conflitos familiares, nomeadamente do divórcio dos pais, de problemas de comportamento e escolares e de solidão. Nas queixas e denúncias por intermédio de adultos, as questões relativas às crianças que chegam mais frequentemente ao SOS dizem respeito a problemas de comportamentos escolares, a maus tratos na família, a casos de negligência e a abusos sexuais.
Segundo a coordenadora do serviço, os adultos que contactaram com mais frequência o SOS Criança são as mães e outros familiares, vizinhos, assistentes sociais, pediatras, professores e outros membros da comunidade.
Quanto às crianças que recorrem diretamente ao SOS, Maria do Céu Curto diz que o grupo mais numeroso é o das crianças isoladas, entre os 9 e os 11 anos. Quando, no atendimento, lhes perguntam se já falaram dos seus problemas aos pais, respondem, invariavelmente, que os pais não têm tempo.
Traçando o perfil dos pais que recorrem ao SOS, Maria do Céu Curto disse ao PÚBLICO que, «de um modo geral, não são dos mais desfavorecidos economicamente, mas exercem profissões socialmente pouco valorizadas». E acrescentou: «Em geral, ascenderam a um certo nível económico, mas o nível cultural é inferior ao que aspiram para os filhos e que, em certa medida, os filhos já têm».
Em princípio, o SOS – Criança dá uma resposta imediata, a menos que a consulta exija qualquer investigação ou o recurso a outros técnicos ou instituições. O serviço procura detetar com qual familiar a criança tem melhor relacionamento e remete-a, preferencialmente, para um diálogo franco com o pai ou a mãe, fazendo-a refletir sobre a própria vida dos pais. É aquilo que Maria do Céu Curto designa por «terapia ao telefone». Em certos casos, porém, o SOS – Criança considera que está perante situações que exigem a sua intervenção ou mediação, designadamente em relação aos serviços sociais, aos centros de saúde ou ao curador de menores.

Portugal vai à guerra?
A criança que recorre ao SOS, de um modo geral «está sozinha em casa grande parte do dia e faz parte de uma comunidade que não lhe dá nada em matéria de ocupação de tempos livres». Esta é a situação mais frequente.
Mas segundo a coordenadora do SOS, também os meios de comunicação audiovisual, avidamente consumidos pelas crianças, têm pesadas responsabilidades em relação a certas dúvidas e inquietações, ao despertarem questões às quais não dão respostas adequadas e claras.

Está neste caso o noticiário sobre a situação no Golfo Pérsico – designado em geral simplesmente golfo, sem geografia – que nos últimos meses tem suscitado um volume considerável de consultas ao SOS – Criança. As perguntas são marcadas por uma acentuado alarmismo e as crianças procuram entender o que se passa, se vai de facto haver guerra, que efeitos e âmbito terá um conflito militar e se Portugal estará envolvido ou será atingido pela guerra.
No último trimestre – em relação ao qual não está feito o balanço dos atendimentos do SOS – Criança – esta foi uma questão tão inesperada como candente.
O Instituto de Apoio à Criança – em que cujo âmbito funciona o SOS – foi fundado em 7 de Março de 1983 e é uma instituição privada de solidariedade social que, segundo a sua presidente, Manuela Eanes, tem na prática o estatuto de Provedor da Criança.


João Paulo Guerra, Público, 24 de Outubro de 1990

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