Páginas

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Entre milhafres e Açores

Por João Paulo Guerra,
o diário, 20 de Dezembro 
de 1986

Naquele tempo, João Bosco Mota Amaral reuniu-se com os jornalistas e disse: «Este ano tive algumas derrotas. Assumo-as mas, no entanto, considero-as injustas. Foi um ano difícil».


A cena passou-se a 12 de Dezembro de 1986, no Palácio de Sant’Ana, sede da presidência do Governo de Mota Amaral, em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, perante 18 jornalistas do continente convidados para uma visita guiada – estreita, calculada e rigorosamente guiada – às vantagens e aos feitos do Governo Regional dos Açores. «Não digam mais do que viram e que o Senhor do Espírito Santo ilumine os vossos espíritos», tinha pregado o padre Coelho de Sousa, director do jornal da paróquia numa outra homilia aos jornalistas. O sacerdote estava, obviamente, feito com as intenções do programa: visitas a obras monumentais, marcadas pelo gigantismo e de rentabilidade duvidosa, e sucessivas audiências com secretários do Governo Regional e outros altos funcionários, numa monocórdica sucessão de discursos do poder por conta do PSD. «Uma operação de charme?», perguntou um jornalista a Mota Amaral. Tratava-se, respondeu o presidente do Governo Regional, de uma iniciativa com vista a «fazer desaparecer e erradicar de vez» as suspeitas acerca de desígnios e ligações separatistas que pesam sobre o Executivo e o PSD regionais.
Através dos jornalistas, Mota Amaral acenava assim com a sua proposta de tréguas ao cabo de um ano duro. Foi a nomeação do brigadeiro Rocha Vieira para ministro da República - «Em vez de um civil açoriano foram-nos desencantar um militar algarvio», desabafou Mota Amaral. Foi o veto presidencial culminando a polémica em redor da revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma - «o Presidente Mário Soares tomou decisões particularmente hostis aos Açores», comentou Mota Amaral. Foi a decisão de fazer passar pelo ministro da República a transferência de verbas do Orçamento de Estado destinada à região - «Ficámos numa posição extremamente desconfortável», declarou Mota Amaral. Foi uma situação de permanente tensão com o próprio Governo da República, também do PSD - «Não recebemos [do governo de Cavaco Silva] atitudes de compreensão e simpatia», confessou Mota Amaral. Foram as acusações sobre o envolvimento directo do Governo e do líder regional do PSD na perversão separatista - «velhos fantasmas», sintetizou Mota Amaral. Foi o facto inédito, insólito e impensável num passado recente, de o presidente do Governo Regional se deslocar ao Continente para se avistar com os líderes de todos, mas todos, os partidos políticos com representação parlamentar - «Estamos empenhados em reforçar um efectivo diálogo nacional», disse Mota Amaral. Foi, em suma, um ano particularmente difícil - «Gostaríamos de retomar a linha da normalidade», propôs Mota Amaral pelas interpostas pessoas de 18 jornalistas do Continente.

Dom Sebastião
Os jornalistas foram recebidos por João Bosco Mota Amaral num salão do Palácio de Sant’Ana. O ritual da audiência passou por uma longa espera num salão sem cinzeiros – os hábitos viciosos dos humanos ficaram à porta da rua – com os jornalistas sentados de frente para uma pequena secretária de torcidos e tremidos emoldurada com panejamentos bordados. Um ramo de flores lilases e o estofo roxo do cadeirão de braços eram as notas de cor no décor para João Bosco. Mais um altar que um trono.
A uma pergunta do jornalista de “o diário” sobre um dos empreendimentos visitados, o gigantesco porto do Praia da Vitória, Mota Amaral respondeu que se tratava de «um velho projecto solicitado pelos povos da ilha Terceira a Dom Sebastião», um «sonho» ao qual só o seu governo, quatro séculos mais tarde, «meteu ombros».
«O povo reconhece-se nele», tinha dito ao redactor de “o diário”, no dia da chegada, um funcionário governamental. Mas como? Interrogou o jornalista. Como se ele é tudo o que o comum das pessoas não é, asceta e casto, discreto e ordenado, uma figura mais do catecismo que da história. «Por isso mesmo. O povo é muito conservador», observou o funcionário.
Nos Açores, a taxa de analfabetismo da população com mais de 14 anos é de cerca de 23 por cento, com particular incidência nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Graciosa. A Igreja tem uma influência poderosa e, falando do bispo, D. Aurélio Granada Escudeiro, um dirigente local do próprio PSD considerou-o «muito retrógrado». A religiosidade é associada à crendice e a cultos e práticas obscurantistas, embora a situação não seja homogénea no conjunto das ilhas. Na Terceira, com tradições de luta política que vêm das guerras liberais, as festas populares mais concorridas sãs as esperas de toiros. Em S. Miguel, onde domina ainda o latifúndio, são as procissões.
Em sucessivos encontros públicos e privados com altos funcionários do Governo Regional, a figura de Mota Amaral foi referida em termos que ultrapassam o respeito para se aproximarem da devoção. Quando se diz «ele» é «Ele», quase como que a referência a um iluminado.

Um passo em frente, dois passos atrás
O ano de 1986, no entanto, foi mau para Mota Amaral. «Tive algumas derrotas», reconheceu o próprio. «Bateu no fundo», comentou um jornalista açoriano durante um fugaz encontro com os camaradas do Continente.
O Governo da Região assenta numa confortável maioria de 28 em 44 deputados na Assembleia Regional. Dos restantes deputados, 13 foram eleitos pelo PS, 2 pelo CDS e 1 pelo PCP. O nº 1 do PSD, Mota Amaral, preside ao Governo, enquanto o nº 2, Américo Natalino Viveiros, preside à maior empresa da Região, a EDA – Empresa de Electricidade dos Açores. O Governo controla uma gigantesco aparelho administrativo: 700 quadros com funções dirigentes, 10.600 funcionários mais 5 mil contratados a prazo. Mota Amaral não pode nem quer arriscar uma derrota. E foi assim que, depois de anunciar que o seu projecto de autonomia «devia dar um passo em frente», se viu forçado a recuar dois passos.
E o maior recuo de Mota Amaral, do seu Governo e do seu partido terá sido o ter que definir-se em relação à questão da Autonomia, metendo na gaveta formulações equívocas como a da «autonomia progressiva». Foi na sequência da polémica sobre a revisão do Estatuto da Região que o Conselho Regional do PSD declarou publicamente, em 22 de Novembro de 1986, que aceitava como insusceptíveis de serem regionalizadas as questões relativas à defesa nacional, à política externa e à justiça. A política faz-se de compromissos que, com frequência entre nós, têm assumido formas indigestas: sapos vivos e mamutes quanto baste. 
        Mota Amaral, neste particular, teve que comprometer-se com a posição do chamado Grupo da Terceira, facção da organização regional do PSD encabeçada por Álvaro Monjardino, ex-presidente da Assembleia Regional: «Os Açores fazem parte histórica, cultural e politicamente da Nação Portuguesa; os Açores são elemento das estruturas do Estado Português sob a forma de Região Autónoma. Nesta conformidade, o Estado Português é uno. Além disso, é unitário, isto é, não é federal». Era esta a posição do Grupo da Terceira, minoritário no PSD Regional, que Mota Amaral teve que aceitar como posição oficial do PSD Regional.


O separatismo 
na gaveta
Ao longo de dez anos da sua consagração constitucional, a Autonomia teve que confrontar-se com perversões que são, no fundo, faces da mesma moeda: o separatismo e o centralismo. E se o centralismo é hoje claramente prefigurado no Governo de Cavaco Silva, quem representará o separatismo?
Durante a visita aos Açores – pelas cidades da Horta, Praia da Vitóra e Angra do Heroísmo e Ponta Delgada, nas ilhas do Faial, Terceira e de São Miguel – o redactor de “o diário” ouviu e recolheu solenes e sonantes declarações anti-separatistas. Tantas que, com alta probabilidade, partiram até da parte de um ou outro separatista. Porque não é de crer que o separatismo seja apenas o tal José de Almeida, livreiro e professor de História em Ponta Delgada e face visível da chamada FLA – Frente de Libertação dos Açores. Nem que tenha sido apenas «um estado de espírito mais que um movimento», como disse um alto funcionário local depois de admitir que, ele próprio, nos idos de 1975, distribuiu propaganda separatista composta e imprensa com dinheiros vindos dos Estados Unidos da América.
Açoriano Oriental
Também o separatismo beliscou este ano a imagem de Mota Amaral, forçado a reconhecer publicamente que, pelo menos, colaborou na redacção do programa da chamada FLA. Ora a FLA, para além do programa e das pichagens recentes, nas cidades açorianas visitadas, foi também o terrorismo bombista dos anos 70 e tem sido, continuando a ser, acima de tudo, um processo de chantagem apontado contra a democracia portuguesa. Digamos que os separatistas, quem quer que sejam, meteram o separatismo na gaveta. Mas guardam a chave da gaveta no bolso.
Na generalidade, os interlocutores dos 18 jornalistas do Continente fizeram por deixar como consensual a ideia de que o separatismo é «uma criação estranha ao povo açoriano». José de Almeida é «uma marioneta», dizem. Talvez por isso se fale na sua substituição, como líder da FLA, por um alto funcionário do Consulado dos EUA em Ponta Delgada, Vítor Cruz. Seja ou não assim, a verdade é que a ligação do separatismo aos EUA vem dos antecedentes do movimento. Bastará recordar a chamada Conspiração de Fall River, denunciada em Novembro de 1978, pelo “Boston Magazine”, como uma insurreição separatista envolvendo políticos e financeiros norte-americanos, ex-operacionais da OAS, como Jean Paul Bletiere e Jean Denis Raingeard, tudo com conhecimento, pelo menos, do subsecretário de Estado norte-americano Arthur Hartman.

Um porta-aviões
A presença norte-americana nos Açores é obsessiva, não apenas na Ilha Terceira, onde está localizada a Base das Lajes e os militares dos EUA passeiam pelas ruas e estabelecimentos da Praia da Vitória a sua extrema arrogância.
Há um milhão de açorianos nos EUA. Diz-se que cada família dos Açores tem, no mínimo, um parente na América. Esta relação transporta para a Região os usos, costumes e valores da chamada american way of life que muitos açorianos, atingidos pelos efeitos de uma economia atrasada, identificam com o progresso e o bem-estar. À chamada «guerra das bandeiras», entre os símbolos nacional e regional, bem se pode juntar o pavilhão das strars and streaps que em muitos estabelecimentos e outros locais públicos, como residências privadas, substitui, pura e simplesmente, as bandeiras verde-rubra, do País, e azul e branca, da Região. A América deu alguma coisa a cada uma daquelas famílias que mais ninguém lhes deu, nem a Pátria, nem a Região, nem Deus, nem o Patrão.
Mas se os Açores já eram um «porta-aviões», como afirmou Vasco Garcia, deputado açoriano do PSD no Parlamento Europeu, referindo-se ao papel que os EUA destinaram à Região no âmbito da situação geoestratégica, é previsível que as facilidades militares, com a sua rede de dependências, estejam em vias de ser reforçadas. Durante a deslocação aos Açores, os jornalistas do Continente visitaram as obras de construção do gigantesco molhe sul do porto da Praia da Vitória, na ilha Terceira, às quais se seguirá a construção de um cais de 500 metros. No seu conjunto, a obra representa um investimento de quatro milhões de contos, um risco de rentabilidade duvidosa, se se destinar exclusivamente ao atrair o trânsito de mercadorias. O presidente do Governo Regional excluiu que estivesse excluída a utilização militar do futuro porto. Mas o que é certo é que na Lei de Programação Militar, já entregue na Assembleia da República e parcialmente divulgada pelo “Correio dos Açores”, está previsto um investimento do Orçamento de Estado para a construção de «um ponto de apoio naval» na Praia da Vitória.

Como reconheceu o secretário regional das Finanças, Álvaro Dâmaso, há na região uma certa «falta de iniciativa privada» limitada a sectores como os lacticínios, o tabaco e o açúcar. Têm encerrado empresas na Região e, segundo Álvaro Dâmaso, «não têm aparecido novas iniciativas», para além do pequeno investimento no sector têxtil aproveitando as vantagens que o Governo Regional oferece ao investimento dos emigrantes e que vão até ao pagamento de 50 por cento dos salários. As remessas totalizadas no ano passado foram de nove milhões de contos.  
A visita aos Açores constituiu uma via-sacra pelas jóias da coroa do Governo Regional. E se alguém quis ver alguma coisa fora do programa, teve que se desenfiar e utilizar meios próprios. Alguns jornalistas fizeram-no.

Bolsas de miséria
Rabo de Peixe existe e vem no mapa: fica na costa norte da ilha de S. Miguel, concelho da Ribeira Grande. Mas Rabo de Peixe não figurou no itinerário dos jornalistas: é uma das chamadas «bolsas de miséria» dos Açores.
A existência dessas bolsas foi reconhecida perante os jornalistas do Continente pelo director regional da Segurança Social que, no entanto, as classificou como «casos pontuais». 
Fontes sindicais – contactadas à margem do programa da visita – afirmam no entanto que a miséria absoluta atinge cerca de 16 mil dos 245 mil habitantes da arquipélago, ou seja, 6,5 por cento da população.
Rabo de Peixe, a 20 quilómetros de Ponta Delgada, é o caso mais conhecido de miséria e degradação. Mas existem outros, por exemplo na Fajã de Baixo, às portas da capital da ilha de S. Miguel, em Água de Pau, na Lagoa, S. Roque, na própria cidade da Ribeira Grande.
A situação de miséria da população de Rabo de Peixe é indesmentível. Um relatório da Comissão Permanente para os Assuntos Políticos e Administrativos, da Assembleia Regional, datado de 6 de Outubro passado, considera que a localidade «tem absoluta e indispensável necessidade» de um «programa específico que vise alterar progressivamente as situações degradantes ali existentes». E dá exemplos da degradação: abastecimento de água «dramático»: «vinte ou mais seres humanos» habitando «casas cubículo» que dariam, no máximo, para três ou quatro pessoas; uma média de 8 a 10 pessoas por habitação, «chegando a haver casas onde vivem, no mesmo quarto, 10 pessoas»; famílias com «crianças de tenra idade a viver nos balneários públicos»; problemas de «alcoolismo e promiscuidade»; «seres humanos, especialmente crianças, que passam fome». É um documento oficial que o diz.
Na Região, segundo outros documentos, são considerados «preocupantes» os índices de prostituição feminina infantil e de prostituição masculina, o consumo de drogas, cuja oferta tem proliferado como resposta à intensa procura, designadamente por parte da população norte-americana da ilha Terceira.
As chamadas «bolsas de miséria» são a face mais evidente de uma economia baseada na injustiça e na desigualdade social. Fontes sindicais estimam que existam 14 mil desempregados numa população activa de 70 mil habitantes: 20 por cento, como taxa de desemprego. Os sindicatos também se queixam de salários em atraso, particularmente na construção civil e obras públicas, e trabalho precário, particularmente nas pescas e agricultura.
A persistência da corrente de emigração, em particular para a América, é a nota mais saliente das insuficiências da política económica e social do Governo Regional. Segundo a Direcção Regional da Segurança Social, a corrente migratória está actualmente fixada entre os 1000 e os 1500 emigrantes por ano. Mas estes dados estão viciados pelas restrições à emigração, por parte de países do destino, como também por parte do Governo Regional. Os pedidos de emigração retidos ascendem a 12 mil, o que altera profundamente o conteúdo das estatísticas. E, mais ainda, o seu significado.

Milhafres e Açores
Cinco dias nos Açores, a toque de caixa de um intenso e parcial programa oficial, não chegam para conhecer a Região. Permitem admirar a paisagem deslumbrante das ilhas cobertas de verdura, as furnas dantescas de S. Miguel, a bela cidade da Horta descendo para o mar, a doca onde acostou o barco tripulado por Jacques Brel, o Pico do outro lado apontando para as nuvens, convivendo com elas, o outro canal, o do mau tempo, da memória da leitura de Vitorino Nemésio, a histórica e admirável cidade de Angra do Heroísmo, reconstruída com gosto e muita coragem apenas seis anos após o terramoto devastador.
Sobraram os encontros formais, com governantes e funcionários superiores da governação, onde faltaram as pessoas, o povo que trabalha e produz, que faz a História e em nome de quem tão pouca história se faz.
Mota Amaral chamou os jornalistas do Continente para que transmitam um pedido de tréguas, ao fim de um ano de duras derrotas do Governo Regional. Mas com alguma probabilidade, após o pedido de tréguas, a desestabilização continua dentro de momentos.  Depois, a luta continua, entre  açores e milhafres, em torno da democracia e da Autonomia constitucional.

João Paulo Guerra, o diário, 20 de Dezembro de 1986
A Ilha do Pico, vista da janela do avião, não fazia parte do programa da visita

1 comentário:

bloguedodesconhecido disse...

Faltou dizer que o sr. José de Almeida, além do seu passado fascista e colonialista, era deputado à Assembleia Nacional fascista no dia 25 de Abril de 1974. Foi dos poucos que lá estavam no dia da revolução. Nunca se viu um candidato a libertador tão desprezível e sem nível. Apesar do PPD/PSD sempre ter procurado a nível regional desculpabilizar a extrema-direita separatista, um grupo ultra-minoritário e ultra-reaccionário, praticamente limitado a Ponta Delgada, e cuja actividade de vulto se limitava ao vandalismo público, através de inscrições nas paredes.