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quarta-feira, 28 de março de 2018

A Balada de Montechoro

o diário, 9 de Janeiro de 1984

Albufeira (do nosso enviado, João Paulo Guerra) – No tribunal da opinião pública já há um condenado no julgamento do processo do atentado de Montechoro: o sistema de segurança do Congresso da Internacional Socialista.

Issam Sartawi, representante da OLP no Congresso da Internacional Socialista, foi abatido a tiro no átrio do hotel, passam agora nove meses. Foi abatido, ainda não se sabe por quem, em nome de quê ou em que circunstâncias. Mas foi abatido durante o Congresso no Hotel de Montechoro e quem o abateu usou e abusou de extremas facilidades. Sartawi não dispunha de segurança pessoal. Esse facto, constantemente invocado pelos organizadores do Congresso, não os iliba de responsabilidades. Compromete-os mais. É que, sem guarda pessoal, Sartawi poderia ter sido abatido no hotel em que se hospedava, no meio da rua, a uma esquina. Mas não foi. Foi abatido dentro do Congresso, para lá do balcão de recepção dos congressistas, no centro de um fórum de chefes de governo e de alguns dirigentes da social-democracia europeia, reunidos em Portugal à responsabilidade do Governo do PSD e do PS.


O julgamento que está a decorrer no tribunal de Albufeira tem ajudado a esclarecer e a comprovar isto mesmo. O inspector da Direção Central de Combate ao Banditismo que investigou o caso chegou já a afirmar, em plena audiência de julgamento, que «o autor do atentado encontrou tantas facilidades parta a consumação do crime que se convenceu que tudo correria bem até ao fim». Mas, já lá vamos, ao inspector.
Issam Sartawi foi abatido na presença de dois agentes de segurança. Hoje, podem ambos dizer que fizeram e que aconteceram, por isto e por aquilo. O que não fizeram é que está provado: não garantiram a segurança a um participante do Congresso nem detiveram o autor do atentado. Um deles, guarda da Divisão de Segurança do PSP, à vista do crime, lançou-se para o fundo de uma cabine telefónica. Outro, agente do Grupo de Operações Especiais, recapitulou toda a teoria do manual de operações especiais. Quando passou à prática o autor do crime ia já pela porta fora. Na vida real, as coisas não se passam exatamente como na “Balada de Hill Street”.
Tais factos levantam a questão da actuação estrondosamente falhada das policiais especiais. Até porque, há mais. Na verdade, a única actuação eficaz em todo este caso foi a dos corpos tradicionais de polícia. Enquanto teve a investigação a seu cargo, a Polícia Judiciária de Faro descobriu, num brevíssimo espaço de tempo, a ponta mais importante da meada: a presença em Montechoro e a fuga para Lisboa de Yossif Al Awad que, aliás, veio a ser detido na capital pela PSP. Depois o caso transitou para o ramo especial da PJ, a DCCB / Direcção Central de Combate ao Banditismo. E depois?
Yossif Al Awad chegou ao julgamento como «confesso autor do atentado sem arrependimento». É isto fruto da investigação da DCCB? Nada disso. É um fruto de uma confissão que o inspector Calvão obteve, mas cujo conteúdo o réu agora nega. O inspector diz que a DCCB «não investigou apenas este homem», nem se «conformou» com a confissão. Mas, o que terá investigado e sabido mais, designadamente junto da Interpol e da Polícia francesa, isso não se sabe. Aliás, verdade se diga, ninguém lhe perguntou no julgamento.
E é assim que, após três sessões de julgamento, a «prova» mais contundente contra o réu é a «convicção» do investigador. O que, como prova, é manifestamente pouco, sobretudo se Al Awad é mesmo o autor do atentado como o inspetor pretende. E até pode ser que seja. O que é certo é que a superpolícia de Combate ao Banditismo teve nas mãos um indivíduo que poderá ser uma de diversas coisas – um terrorista, um fanático, um assassino a soldo, um agente dos serviços secretos de Israel, um louco – e que contra ele não conseguiu apurar coisa alguma. Nem sequer que ele é, como é de facto, cúmplice confesso de um crime de morte.

Vejamos
No dia 10 de Abril de 1983, no átrio do Hotel de Montechoro onde decorria o Congresso da Internacional Socialista, alguém disparou sobre Issam Sartawi, observador da Organização de Libertação da Palestina / OLP no Congresso, causando-lhe a morte.
A cena foi testemunhada por dois rececionistas do Hotel. Um deles afirma hoje que o autor dos disparos foi um homem «bem constituído, sem ser forte» que vestia de «uma maneira clássica», casaco de xadrez e calças lisas castanhas, usava óculos com aros de tartaruga e lentes de cor esverdeada. A testemunha viu o autor dos disparos a curta distância e diz hoje, no julgamento a decorrer em Albufeira, que o autor dos disparos «não é parecido com o réu do processo».
Uma outra recepcionista do hotel assistiu também ao atentado. Sartawi e o seu secretário estavam de frente para o balcão da recepção, quem disparou estava de costas. Era um homem de cerca de 30 anos, de bigode e óculos ligeiramente fumados, trajando um fato em dois tons de castanho. A testemunha viu-o e tem ideia que ele «não lhe era desconhecido», embora não saiba precisar quando e em que circunstância o viu anteriormente.
- Era o réu do processo?
- Não posso confirmar.
Pormenor inédito dos depoimentos: as testemunhas asseguram que o autor dos disparos não fugiu em direcção à porta, após os tiros, mas para o interior do hotel.
- Não, o atirador fugiu para a porta – garante o empregado do balcão de informações da portaria. Disparou, observou o local e as vítimas e saiu a passo. Apressado, mas a passo. A testemunha tem a certeza do que diz porque o atirador era perfeitamente identificável: era o único homem que permaneceu de pé no átrio do hotel.
- O único? Então e os agentes de segurança?
- De pé não vi nenhum.
O «mandarete» também viu mas pouco. Mas este, pelo menos, tem a franqueza de dizer que fugiu aos primeiros tiros. O pouco que viu não dá para reconhecer ao atirador. Mas lá que tinha roupa castanha, óculos e bigode, isso tinha.
No momento preciso do atentado, ia a entrar no átrio do hotel um agente da Direcção de Segurança da PSP. Ouviu tiros e viu um grupo de 3 ou 4 pessoas «agarradas umas às outras». Diz que reconhece o arguido e afiança que «era ele quem tinha a pistola». Tem a certeza do que diz porque encarou de frente o autor do atentado que até chegou a apontar-lhe a arma e só não disparou porque o secretário de Sartawi se colocou momentaneamente entre ambos. Tudo isto durou «uma fracção de segundos». Entretanto, o agente refugiou-se numa cabina telefónica, onde sacou a arma e se lançou, só então, em perseguição do criminoso. Era o réu, tem a certeza. Vestia, tal como agora no tribunal, jeans e camurcina castanha. Perseguiu-o a uma distância de 15 metros, disparou primeiro para o ar, depois para a figura e falhou. O fugitivo, a certa altura, caiu, enrolou, deu duas cambalhotas em frente e retomou a fuga.
O inspector da DCCB que investigou o caso diz que o fugitivo não caiu. O inspetor não estava lá, mas sabe toda a teoria sobre a técnica dos atentados.
- O fugitivo – diz – simulou a queda para desmotivar os perseguidores que, pensando tê-lo atingido, deixaram de disparar.
Uma outra testemunha identificou-se como «agente da autoridade».
- De que autoridade?
- Do Grupo de Operações Especiais da PSP.
O agente estava no átrio do hotel, ouviu 5 ou 6 disparos e procedeu como mandam os manuais: sacou a arma e rodou sobre o pé direito; viu um indivíduo a fugir, já do lado de fora da porta; o fugitivo vestia um fato cinzento claro, tinha a estatura do arguido e, por um reflexo do sol, garante que tinha óculos.

Armados em polícias

Os óculos, pois, os óculos. Três dias mais tarde foram encontradas nas redondezas uma lente e uma haste de óculos. O facto levou uma jornalista da Rádio Comercial a calcular que fora por ali o percurso da fuga. O local tinha já sido vasculhado pelas polícias mas o jornalista, com outros seus camaradas, «foram à procura de coisas, armados em polícias».
Encontraram, nada mais, nada menos, que a arma do crime.
Mas voltemos atrás.
Na manhã de 10 de Abril, cerca das 9 horas, um recpcionista do Congresso aguardava, na rampa de acesso ao hotel, uma carrinha com delegados da República Federal da Alemanha. Às tantas ouviu tiros no átrio do hotel e, pouco depois, um homem saiu para a rampa a passo. Só depois começou a correr. Tinha cabelo preto e vestia um fato cinzento.
- Cinzento?
- Cinzento. Não tenho dúvidas.
Castanho, fato castanho, «mais escuro que o castanho da farda do hotel», diz outra testemunha. Pormenor: viu o fugitivo sair pela porta na companhia de duas empregadas a limpeza. Ou, pelo menos, de duas pessoas com a farda de empregadas da limpeza. O fugitivo era «pessoa nova, cabelo preto» mas não era «parecido com o réu».
Atrás do homem, diz a testemunha anterior, apareceram agentes de segurança aos tiros.
- Identifica o fugitivo com o réu?
- Não.
Ao fundo da rua, um professor de Lisboa observou a mesma cena. O fugitivo era moreno, alto, cara rapada, nada de barba nem de bigode, casaco e calças, arma na mão direita. Não ia propriamente a correr mas num «passo largo».
- Era o réu?
- É o mesmo, mas agora com barba, cabelo mais curto e penteado de outro modo e sem óculos.
A mulher do professor é da mesma opinião. Reconheceu o fugitivo e identificou-o com o réu, isto na fase de investigação. Chamada á DCCB, reconheceu-o entre cinco fotografias que lhe apresentaram. Ninguém perguntou que fotografias.
Mas ao fundo da rua, dentro de um automóvel, outra testemunha. Parou, porque outro carro travou á frente. Pensou que eram foguetes, depois viu um homem a fugir, perseguido, e entendeu que aquilo é que são tiros. Viu o fugitivo mas não o reconhece, até porque, naquele momento, o fugitivo estava de costas. Mas virou-se, a dado momento. Vestia um casaco escuro e tinha uma arma na mão direita. Não tem ideia que fosse o réu.
Uma outra testemunha viu tudo de uma janela do 10º andar. Viu, mesmo assim, um fugitivo de fato escuro, casaco e calças iguais e de gravata.
- Gravata?
- Sim, gravata.

De táxi
Pouco depois do atentado no Hotel de Montechoro, no Hotel da Aldeia, a 10 minutos de caminho do local do crime, um hóspede entregou a chave do quarto à recepcionista que lhe perguntou, em inglês, se ele se ia embora. Tinha chegado na véspera, procedente de Lisboa / Santa Apolónia. Vestia calças e camisa em tons claros, mais nada. Nada na mão, nada na cara: nem barba, nem bigode, nem óculos. Voltou ao hotel cerca das 10 horas, vestido do mesmo modo, pediu a conta e um táxi para Lisboa, foi ao quarto no rés-do-chão e voltou com um saco e um blusão.
Issam Sartawi ao vivo no Congresso
- Sentou-se calmamente à espera do táxi.
- Era o arguido?
- Sim, é possível.
O táxi levou-o até Lisboa. Viagem calma e rápida, pouca conversa, que havia diferença de idiomas, disse o taxista. Ouviram cassetes pelo caminho, a pedido do passageiro. A GNR, alertada entretanto pela PJ de Faro, não interceptou o táxi na ida para Lisboa mas mandou-o parar na volta para o Algarve e soube assim em que ponto preciso terminara a viagem. Pouco depois, o fugitivo foi detido pela PSP.
- Não ofecereu resistência, não tentou fugir – disse o captor.
Yossif Al Awad diz agora, no tribunal, que agiu de modo deliberado para atrair sobre si as atenções, presume-se que para facilitar a vida a cúmplices. Confessa que participou no planeamento de todo o atentado mas garante que não disparou.
O inspector Pereira Calvão tem outra teoria: Al Awad tinha encontrado tantas facilidades até ao momento do crime que pensou que tudo lhe continuava a correr bem. O inspector é homem de convicções firmes. Nos intervalos das audiências confere as suas convicções com leitura do jornal O Dia.
O julgamento prossegue e aproxima-se do fim com as alegações da acusação pública e da defesa, o veredicto dos jurados e a sentença dos juízes. Uma coisa é certa: Yossif Al Awad não vai ser condenado nem absolvido. Yossif Al Awad não existe. Existe sim um indivíduo sentado no banco dos réus, de quem a DCCB nem a verdadeira identidade conseguiu apurar.

João Paulo Guerra, o diário, 9 de Janeiro de 1984
Yossif Al Awad foi condenado a três anos de cadeia por uso de passaporte falso, a única acusação provada em tribunal, e libertado a meio do cumprimento da pena por bom comportamento. 

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